Partejar a palavra

Iolly Aires
3 min readSep 2, 2022

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Nem mesmo me lembrava do que estava fugindo quando fui em sua direção. Estava sempre voltando àquele ponto inicial, talvez, inconscientemente à procura de uma espécie de cura. Em um velho Volkswagen Variant, dirigi por quilômetros até acabar em frente à porta dela. Era uma parte árida e desolada do Nordeste, com uma ou outra propriedade ao longo do caminho. Desci do carro, bati palmas em frente à porta da casa de taipa, sem resposta. Sabia onde encontrá-la.

Ela estava sozinha, nas fronteiras da pequena propriedade rural. Há anos deixei-a apenas para voltar e observá-la de fora, entre as plantas silvestres cuja finalidade foi passada de mãe para filha. Ali onde ela demora-se em contemplação; a pele cor de terracota, como o solo, como se pertencesse àquela paisagem. Quem é capaz de apreciar a sua beleza? Não tenho medo da velhice, pois é como ela que me vejo no futuro — embora ela se pareça mais com o passado. Ela habita o meu reflexo, perdida no tempo; mas não é um espelho indigesto. O rosto enrugado feito a casca de uma árvore ancestral, envolve-nos no arrebatamento de uma nébula.

Fui ao seu encontro porque descobri que precisava de algo que somente ela podia me dar.

“A bença, vó”, eu digo, e ela me estende as mãos enrugadas, calejadas, manchadas de sol. Franze a testa com curiosidade ao me ver e convida-me para entrar com um gesto. Raios de sol penetravam as janelas da sala, criando uma atmosfera agradável e acolhedora. Nos copos desencontrados de extrato de tomate, serve o café, cujo aroma me faz sentir estranhamente calma. Em silêncio, nos comunicávamos. “Onde estive este tempo todo?” Não se referia ao local propriamente dito. “Estive fora de minha vida, longe de quem realmente era, vagando em alguma parte.” Ela não quis abordar diretamente o assunto da tentativa de suicídio, para não ferir a minha sensibilidade. De vez em quando eu a percebia estudando-me, cismada. Com olhos de grãos de café. Com olhos de búzios. O que ela antevia?

De repente, saiu da sala, ouvia-a procurar algo na gaveta da escrivaninha. Retornou com caixa de biscoitos finos, que continha recordações. Colocou em minhas mãos nada menos que uma tesoura de lâminas finas, um tanto enferrujada, com uma insígnia de âncora, cruz e coração gravadas no meio. Era um símbolo de umbanda, como viera a saber mais tarde, que significava fé, caridade e esperança. Uma tesoura de parteira, utilizada para corte do cordão umbilical, passada de mãe para filha durante gerações. Ela sabe me alcançar, mais do que qualquer um.

Os postos de saúde foram se espalhando e, com eles, os saberes e práticas das parteiras desaparecendo. Já não há interessadas em percorrer quilômetros, em paisagens áridas, para atender parturientes, motivadas apenas pelo senso de comunidade. “Maiêutica” significa “ciência do parto”. É como Sócrates denominava o método utilizado para parir conhecimento, inspirado em sua mãe, a “famosa e imponente” parteira Phaenarete. Assim como minha avó, Phaenarete não deixou livros. O que ela sabia não cabia em palavras gravadas, estáticas, vazava em interjeições, gestos, letramento do corpo. É por isso que quando ela está com o queixo erguido, imponente, tenho a impressão de que se estende por eras, infinita.

Com a tesoura de parteira em minhas mãos, senti o reverberar da ancestralidade. Aquela tesoura rompeu cordões umbilicais, quando era o momento de sair do invólucro, após ter sido nutrido, preparado. As mãos das mulheres da minha linhagem conduziram muitos àquela luz, que os chamava para fora. Tão luminosa que agredia a visão e os fazia desejar ser lançados na escuridão novamente. Tudo isso recolhi e fiz delas minhas lembranças também. É como se minha avó, com aquele gesto, assim como Sócrates, tencionasse explicar o que significava aquele sentimento incômodo, de movimento interior, como se algo estivesse brotando. “São dores de parto […] Não estás vazia; algo em tua alma deseja vir à luz.”

Publicado em: Tamarina, ano 2, n.4 — abril/2022.

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Iolly Aires

Escritora, estudante de Letras, revisora de textos e redatora. Colaboradora do site Valkirias.