Amanhecer da mulher

Iolly Aires
2 min readSep 2, 2022

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Minha mãe era uma mulher que, após um longo casamento, filhos criados, quis viver sozinha. O que realmente a fez pedir o divórcio? Por que não manteve as coisas como estavam? Abandonou o marido sem que nenhum amante estivesse à sua espera, nenhuma outra pessoa para protegê-la, guarnecer suas necessidades. Aparentemente, partiu sem nenhum motivo.

Durante anos, ela sentira a presença do marido envolvê-la, quando se aproximava o momento de sua chegada. As suas atividades e o seu ânimo gravitavam em torno dele. Um franzir de sobrancelhas, uma modulação de voz era suficiente para que descobrisse. A partir daí, poderia relaxar ou atuar como quem se desculpa por algo que não sabia do que se tratava. Não, a solidão não a assustava. A assustava mais conviver com alguém que não a enxergava realmente.

Agora ela pode olhar para si.

Não lhe foi dada a oportunidade de escolher a vida que possuiu. Esforçou-se tanto para se aproximar do marido que se afastou de si mesma. Entregou sua essência, renunciou a si mesma por alguém, e ficou oca. Seria difícil, àquela altura, recuperar-se, saber o que era dela, o que era de outro. À meia-idade inaugurou sua vida, embora não tivesse mais a estrada do futuro à sua frente. A cada dia conhecia a pessoa que era, a pessoa que gostaria de ser. Tanto ainda por descobrir.

Ali estava eu, debruçada sobre o parapeito da varanda, a fumar, quando recebi a sua ligação. Em tom confidencial, ela me pediu que a ensinasse a andar de bicicleta. Não pude deixar de sorrir. Depois de tanto tempo, sentia que não a conhecia por completo. Demos uma volta pelo parque, eu andava pelo meio fio. Depois, escolhemos uma bicicleta comunitária.

— Não é difícil. Basta colocar os pés nos pedais e girar. — expliquei.

Ela descia a ladeira de bicicleta a toda velocidade, cabelos ao vento, rindo. Foi ao chão, mais de uma vez. Levantou-se, mas não sozinha. Coloquei meu braço ao seu redor e a ajudei a caminhar, enquanto ela resmungava qualquer coisa. Crianças brincavam de faz de conta, sob a luz da manhã. As árvores que adornavam o local continuavam mudando de folhas de novo e de novo. Apenas nossas silhuetas eram vistas, subindo a ladeira. É um longo caminho de volta a si própria. Não é se encontrar no caminho, é perceber-se caminho. Agora, com frequência, ela é vista pela vizinhança de bicicleta, rumo a lugar nenhum. Libertou-se de suas amarras, como eu tanto falava, e depois? Não sabemos, mas como andar de bicicleta, talvez baste pôr os pés em movimento…

Publicado em: La Loba, Ano 2, Edição #10.

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Iolly Aires

Escritora, estudante de Letras, revisora de textos e redatora. Colaboradora do site Valkirias.